Paixões

Dentre as coisas que tenho aprendido nos últimos tempos, ficar sozinho é uma das que mais me ajudam a refletir sobre questões que me faz bem, sobre meu estado de espírito, sobre o que preciso decidir para respirar melhor e seguir em frente. Quando estou sozinho, busco de alguma forma uma concentração para refletir, acho que a mente humana acaba se desviando para fazer novas conexões sinápticas, assim o que eu sempre faço é ter algo a fixar para que os pensamentos venham.

Meu momento mais reflexivo está em abrir uma carteira de tabaco, pegar um filtro e uma seda, sentar, cruzar as pernas de forma que eu me sinta confortável, enrolar delicadamente como se aquele cigarro fosse o motivo para que seus pensamentos se equalizem – e eles realmente se clareiam – acender, e num pigarro e um gole de vinho, o olhar distante traduz o que vale a pena.

Entre um cigarro e um olhar perdido na parede da cozinha, que já não mantem a cor verde original, mas um engordurado e com manchas do tempo, a decisão de sair para olhar a noite é um convite para uma nova possibilidade. Se você nunca saiu sozinhx, não caia naqueles argumentos que você precisa de alguém, você consegue intimamente viver completo.

É estranho, mas em uma das reflexões que faço sozinho, uma das melhores decisões está em se deixar conhecer pessoas aleatórias, viver momentos e se permitir apaixonar por um detalhe da noite. O que eu não podia acreditar é que o detalhe poderia estar numa conversa sobre meias. Não uma simples conversa, era uma teatralidade, como se existisse uma performance única que deixa o coração mais quente. Seu sotaque mistura duas regiões, mas o detalhe do seu sorriso combinando com seus braços gesticulando sem sentido, mostra que cada palavra emenda num mar agitado de emoções. Eu estou apaixonado por uma pessoa que troquei algumas palavras sobre meias. Meias, um par delas!

Por que me insistem em falar que isso não pode ser amor? Por que existe uma definição para a paixão? Por que precisa ser duradoura? Quero viver as paixões dos momentos, sem ter que contar parte do tempo. Quero viver sem ter medo de sentir o fervor que uma conversa sobre meias possa me passar.

Amor de metade

Estou me sentindo
Num emaranhado de ideias.
As ideias boas me fazem comprar flores.
As más querem que eu compre dores.

Compartilho com os outros todas as boas.
As más sou eu quem vivo,
Sozinho.

Passo semanas planejando
As mais profundas juras de amor,
Pra tudo se esvaziar
No último gole da noite.

Me dou por inteiro,
Onde o amor
Para no meio.

 

 

 

 

Emaranhado

Minha cabeça não para um sequer segundo por dia. Dia desses eu conversava com um amigo e ele dizia que eu estava muito agitado e que eu precisava relaxar e esvaziar a cabeça. Parei, pensei e fiquei meio incomodado com aquela observação, eu realmente nunca esvazio a cabeça em momento algum do meu dia.

Acordo pensando no que eu preciso fazer durante o dia inteiro. Vou escovar os dentes lembrando de alguns problemas que enfrentarei na semana. Tomo banho, com a melhor água do mundo escorrendo pelo meu corpo – o que deveria ser relaxante – mas na cabeça só tem um emaranhado de pensamentos longínquos que não me deixam concentrar nas coisas boas daquele momento.

Nessa época do ano, então, a cabeça fica ainda mais bagunçada. Coisas que eu ainda não resolvi, coisas que eu preciso lutar dentro de mim para conseguir resolver, se dedicar para ficar bem, se dedicar em mil e uma coisa e perceber que ainda não foi o suficiente para se ver satisfeito. O pensamento vem, se bagunça, sai de uma forma ou em alguma atitude e, quando você percebe que não era aquilo que você queria – tarde demais – o que você fez já vai te afetar.

Eu quero passar um dia só sentindo o vento no rosto, como se aquilo fosse suficiente, e não me perder no enxame dos meus pensamentos.

Duros tempos

A roupa é criticada
Por estar fora do padrão.
A barba desalinhada
Incomoda o patrão.

Maquiagem na cara
Todo dia de manhã.
Sapato engraxado para
Fazer parte do clã.

Crachá no pescoço
Pessoa sem rosto
É o fundo do poço
No peito um caroço
Na cara um soco.

O que faz sentido
Pro prato vazio?
O que está contido
No inferno frio.

Rotina

Há um tempo mantenho uma rotina que se resume a acordar, trabalhar, voltar para casa, ver seriado e dormir. Para uma pessoa ansiosa, isso pode ser desesperador, porém, ter controle sobre o que você faz é uma forma de lidar com as angústias da vida.

Por outro lado, manter uma rotina me faz abdicar de muitas coisas que eu gosto. Já não me lembro qual foi a última vez que saí para fotografar pessoas aleatórias. A preocupação com o corpo já não é primordial e isso faz com que eu abandone todos os esportes que eu gosto de praticar. Junto com os esportes, a alimentação saudável não se faz presente e, na minha rotina, o açúcar enche o copo de café e permeia os intervalos das minhas principais refeições. Os quadros não se pintam sozinhos e nem eu me aproximo das telas inacabadas. Os calos nas pontas dos dedos, que já não se fazem presentes, anunciam que o violão está encostado e a poeira é a única que o toca.

Lidar com a ansiedade te faz criar estratégias que muitas vezes é o mais fácil para sua vida, ou para você não desistir de levantar da cama todos os dias. A rotina te faz seguir em frente, mas também te priva de sentir as emoções que o inesperado possa te trazer.

Não sei se a rotina me ajuda a viver melhor ou se é só mais uma forma de me distrair enquanto a ansiedade me come aos poucos sem eu perceber. Sei que ela não me deixa ser o meu melhor e ninguém vai aproveitar o que eu tenho a oferecer. Nem eu.

Quem tem medo de viver

Essa pode parecer mais uma daquelas histórias clichês, mas se o leitor me permitir, o levarei para digressões que causaram momentos sinestésicos. E se por um momento você pensou em desistir, lembre-se que estou acostumado a fazer isso quase todos os dias de manhã, quando o pigarro dói para ser engolido e seu peito é pressionado por um vazio tão grande quanto uma poeira flutuando na fresta de luz que sai da janela.

Tudo começa com um simples violão. Talvez fosse mais simples, mas é aquele violão antigo que meu irmão ganhou da sua madrinha quando era pré-adolescente. Não sei porque, mas ele nunca pegou nesse violão, acho normal para alguém que nunca foi muito envolvido com artes. O mundo acadêmico e financeiro talvez fosse algo já interno no coração dele.

Me lembro, ainda pequeno, tentando arranhar os primeiros acordes de “Come as you are”, sem saber nada de inglês e muito menos de teoria musical. Era a música que todo mundo começava a tocar quando pegava um violão pela primeira vez. Eu estava numa chácara que meus pais nos levavam para brincar e ter um contato maior com a natureza. Minha mãe dirigindo aquele fusca velho, ano 77, que conseguia colocar todos os filhos. Sete num fusca. Ninguém merecia escutar aquele monte de erro num violão novo e totalmente desafinado.

E aquelas pequenas notas e o violão desafinado criaram afinação, viraram solos e um pouco mais do que simples arpejos. As saídas noturnas entre os amigos para roubar flores na vizinhança e jogar para quem gostávamos começaram a virar serenatas. Serenatas. Talvez ali começávamos a entender um pouco do sentido da arte, pois não tocávamos mais só para as meninas da escola, a gente batia às portas, apertávamos campainhas e as notas se misturavam com a noite que só numa cidade sem poluição pode ter – aquela mancha de estrelas com a lua mais vívida.

De casa em casa, sentado na rua com os amigos ou sozinho no quarto, o violão me acompanhava em cada momento. Minha decisão de mudar de vida, conhecer mais gente, estudar e morar em São Paulo não me fez mudar isso. O violão estava lá, naquela carona desconhecida que minha mãe me arrumou para começar uma nova vida. As primeiras noites de final de semana, aprendendo a viver sozinho, eu tinha aquele parceiro de madeira do lado para lembrar dos velhos acordes. Os dedos, agora menos calejados dos acordes, ainda se lembram ao deslizar as cordas no braço do violão empoeirado.

Vivi aqui momentos felizes, paixões, tristezas, emoções e aventuras. Aprendi que tenho mil privilégios e tentei me desvincular de todas as amarguras e amarras que a sociedade me fez acreditar que era o correto. Vivi para participar de momentos que o violão não era bem-vindo, uma lista com músicas no celular era sempre melhor. Não tinha uma roda com todos cantando, não existia mais o erro do acorde, a risada do desafinado, muito menos alguém tentando batucar no primeiro balde que estivesse na frente. Talvez novamente a cultura fria estava falando comigo, tentando me mostrar que as relações entre as pessoas precisa ser só mais uma noite vazia. Eu que queria fogo, dormi na noite gelada e deixei meu violão de lado. E lá ele ficou, no canto do meu quarto.

A frieza da cidade nos faz acreditar que nem nas relações mais simples você possa sentir sinceridade. Todo mundo está fechado, todo mundo tem medo, medo de viver, medo de tocar e medo de falar verdade. Os tempos líquidos talvez sejam exatamente esses, liquidez da não percepção do que nos faz bem. Mas no meio da frieza, qualquer chama é calor intenso. O que me deixa em casa, na cama, as dificuldades que a ansiedade que me traz essa cidade não pode me vencer. Preciso me agarrar. Preciso tirar aquela velha roupa e tentar.

Quem poderia imaginar que em meio a tantas relações vazias, experiências frias, a chama estava logo ali, com muita sutileza, em forma de batom vermelho. Bate a minha porta com sorriso nos olhos, calma, tranquilidade e um coração quente que me fazia querer e querer e dormir várias vezes na semana que a conheci.

No meio de noites mal dormidas e daquele pigarro que me deixa quase sem conseguir engolir, o calor do álcool sobe em meio a conversas profundas, historias compartilhadas, carinhos sinceros e o desejo de viver algo igual. Ela toma partido de coisas que eu ainda não tinha coragem de falar. O que era para ser uma bomba, para mim soa como um convite para viver sem amarras, sem medo. E a liberdade é mostrada em seu corpo pela dança, a cada taça de vinho e música que tocava na sala, uma risada me fazia viver o momento. Vamos fazer tal coisa? Vamos! Topa isso? Topo! Que fosse apenas aquela noite, eu estava satisfeito, a relação intensa é o que importa, o sentido da arte estava voltando.

“Você toca violão?”. Paro por meio segundo e respondo gaguejando ou tentando falar que sim, mas que eu estava enferrujado. Acho que eu estava enferrujado da vida, porque não era só daquilo.

Meu quarto que de manhã era uma poeira na penumbra, agora é palco de uma meia luz, um violão nos meus braços e um interesse verdadeiro de alguém que eu achava não ser possível encontrar por aqui. Eu tento aqueles velhos acordes, aquelas primeiras notas de blues, o solo que todo apaixonado por pentatônica adora arriscar. O sentido da arte está voltando.

O batom vermelho, o calor do vinho e a vontade de algo parecido poderia ser o ápice do meu dia, mas como eu poderia imaginar que enquanto eu tentava lembrar das músicas que eu tocava n’onde existia calor, surgiria uma fala – “eu adoro ouvir gente tocando” – era tudo o que eu precisava.

Parei para pensar naquela frase da Matilde Campilho ao ser questionada sobre o sentido da arte: “Para mim a arte é isso, ela salva momentos”. Tudo fazia sentido de novo. Um calor encheu meu peito, sorri com os olhos e senti de novo um pouco de relação onde já estava acostumado a ver que frieza era cultura. Talvez eu precise voltar para o calor, o sentido da arte está voltando.

Quero mais

Quero a cor do meu cabelo de volta
Quero respirar de novo
Quero viver devagar
Quero pensar menos
Quero esquecer o tempo
Quero ouvir meus passos
Quero sentar no bar
Quero fumar um cigarro
Quero terminar um livro
Quero pintar um quadro
Quero tocar o violão
Quero divagar sobre a vida
Quero sentir menos anseio
Quero parar de querer
E conseguir
viver
um
dia
por
vez.

Amor

De repente o despertador toca – são seis da manhã – e a monótona rotina te chama para enfrentar mais um dia a procurar sentido para vida. A noite mal dormida, talvez duas ou três horas de sono num pêndulo de idas e vindas ao banheiro, ao celular e a luta contra o pigarro da garganta inflamada e o arrepio no corpo provocado por um estado febril. O vento e o escuro indicam que o inverno chegou. Já é junho e o vento frio entra pelas passagens de ar da janela num sibilar constante que parece um grito em meio ao silêncio. A cama quente te abraça como se fosse a areia da praia em uma noite quente de verão – é difícil levantar. A cada tentativa de sair do estado de sono são mil pensamentos sobre o que enfrentar durante o dia. Enfim sentado, meus pensamentos se firmam: “Vai para o hospital e de lá para o trabalho”. Sentar à beira da cama é a pior decisão possível, é como se você se despedisse de alguém que gosta e de repente você volta alguns passos para dar mais um abraço… você vai querer ficar. Os olhos percorrem por um momento o quarto, alguns livros na estante, um pouco de tinta espalhada por uma paleta, telas inacabadas, livros inacabados, desenhos por fazer – quase tudo por fazer. Colocar os chinelos nos pés nunca foi tão difícil, estou de pé. O espelho do banheiro está velho, duas manchas escuras na altura dos olhos, muitos riscos de forma desastrosas a cima da cabeça e um olhar sem rumo. A camisa está amarrotada, a calça cor verde já está desbotada e a bota manchada, estou vestido.

O caminho para o martírio é curto, porém triste. Apesar do inverno, a chuva cai fina e forte o suficiente para molhar seu sapato e sua meia. A cidade é cinza, sem cor e sem vida. Não há arte, não há bom dia, nem respeito aos mínimos detalhes das relações sociais que se vão e vem a todo momento. A cada esbarrão pelo metrô te faz perceber que a cultura predominante é a da indiferença. É mais fácil se esbarrar em alguém e ir embora rápido, como se nada tivesse acontecido, do que parar e pedir as singelas desculpas de quem se preocupou com alguém durante o dia que mal começou. A próxima estação é anunciada, as pessoas se levantam e se espremem diante às portas, como se cada segundo perdido fosse um milhão de reais a menos em suas contas, afinal, dinheiro é a liberdade da maioria – ou pelo menos acham que é.

O hospital é o lugar mais triste para tentar se curar de qualquer doença. Muros altos, gente triste, depressão, filas, sofrimento e a indiferença entre as pessoas fortalece ainda mais os vínculos que as pessoas já não criam na cidade. Parece uma extensão da própria metrópole. O que te cura naquele lugar não é o ambiente, nem os médicos e nem o tempo que fica ali hospitalizado, mas os remédios. Isso quando os remédios curam. Sentado numa dessas cadeiras confortáveis, o soro gota a gota entra no meu sangue e a angústia de permanecer naquele local só vai aumentando. A médica me pede para descansar hoje, pois é melhor para se recuperar. Estou livre por um dia, livre da rotina, livre do que me prende.

Entre todas as indiferenças e tristezas, a cidade tem algo grandioso e que ainda resiste: a cultura. Artistas de rua, teatros, concertos, galerias, exposições, centros culturais e mais uma légua de lugares inusitados que respiram arte. Por mais triste que sejam os dias, música é um dos estados da arte que está presente em quase todos os momentos. Tão forte é o poder da música que para mim se tornou quase um mantra. Todos os dias preciso ligar minha caixinha de som e colocar algum som aleatório que me deixa em paz por pelo menos dez, quinze, às vezes até muitos minutos. Justo nesses dias triste que música faz tão bem, minha caixinha de som estava quebrada e, melhor que repousar e enfrentar a rotina bem no dia seguinte, seria consertar o que me deixa todo dia menos quebrado. O centro da cidade é um daqueles lugares que você consegue absolutamente tudo. A cada esquina um ambulante, a cada ambulante um artigo a venda, a cada beco uma língua sendo falada, a cada prédio milhões de galerias que te permitem desde almoçar no melhor lugar, até comer o podrão barato e humilde que deixa qualquer um satisfeito. Andar por aqui é difícil, mas tem vida. Diferente do metrô e de toda massa que vai em busca da rotina todos os dias, o centro é quente, a vida está em todas as falas, nas rimas nordestinas e nos garotos que vendem alguns eletrônicos tentando fazer o dia. Os prédios altos e desgastados pelo tempo escondem outras tantas belezas. Procuro por um prédio rosa de oito andares, é o meu destino.

Encontro o prédio e vou logo em direção à porta e o porteiro me para: “Onde o Sr. vai?”. Digo para ele que preciso ir até a assistência técnica autorizada para consertar minha caixa de som. Nesse momento ele abre um livro velho, cheio de orelhas, amarelado e malcuidado. Lembro nesse momento de um período da minha infância em que esses cadernos fizeram parte. O ano era mais ou menos 1997, em um período em que eu morava no interior e muitas das minhas manhãs eram passadas sentadas em uma mesa de madeira bem rústica que servia como um “caixa” a observar meu pai trabalhando no açougue. Sempre que chegava algum cliente, meu pai, simpático que era, logo abria um sorriso, atendia como se fosse a pessoa mais importante do mundo independente da classe social, cor, gênero ou sexualidade e, quando acabava de embrulhar a carne num papel rosa, muito parecido com um jornal, fazia a seguinte pergunta: “vai pagar em dinheiro ou para marcar?”. Nesse momento, meu velho que ainda não estava velho, tirava uma caderneta da gaveta da mesa em que eu estava sentado. A caderneta parecida com o caderno do porteiro era toda manchada de sangue e poeira, mas tinha uma letra linda que só meu pai tinha. Via caos e beleza no mesmo lugar. Talvez o caos seja uma maneira de fortalecer a beleza. Meu pensamento se vai e volta com a pergunta do porteiro: “Seu nome?”. Falo meu nome e ele me diz que preciso ir até o quarto andar.

Pego o elevador, subo até o quarto andar e assim que eu saio me vejo confuso sobre qual direção devo tomar. Várias portas estão por ali sem identificação nenhuma sobre loja, apartamento ou qualquer coisa nesse sentido. Tento abrir a primeira porta à minha frente e me deparo com um cômodo minúsculo, mais ou menos um metro quadrado, com apenas duas coisas: uma lixeira impecavelmente limpa e um manequim de loja com uma escrita no peito “Vendo-me”. Saio meio perturbado daquele lugar, bato a porta às minhas cotas e me dirijo para a porta ao lado, a única que estava com um pouco de barulho no interior. Tento abrir, mas a porta estava trancada. Logo vem aquele medo “toco a campainha ou não”. Pois bem, atitude nunca foi meu forte, mas eu só queria ir embora, pelo menos daquele prédio, afinal eu tinha uma reunião para fazer ainda hoje com alguém que poderia mudar minha vida. Calma, eu ainda não mencionei sobre a reunião! Preciso voltar algumas horas do dia, quando eu ainda estava no hospital e lhes contar uma coisa.

Ainda quando eu estava no hospital me martirizando pela péssima rotina que tenho e por achar que aquela doença era justamente fruto da vida que eu tenho, recebi uma mensagem de alguém. A mensagem era de um diretor de um espaço cultural me fazendo um convite para um café. Cultura, artes, música, exposições. Meus olhos naquele momento se perderam no vazio e me fizeram acreditar que havia esperança de dias melhores em meio ao caos de um hospital e de uma vida que há tempos não me agradava. Eu prontamente respondi a mensagem aceitando o convite.

De volta às portas misteriosas, enfim tomo a decisão. Aperto a campainha. Num estalar automático a porta se abre e vejo um apartamento antigo à minha frente. Pelas paredes haviam prateleiras com muitos materiais eletrônicos, computadores antigos e amarelados. Na sala ao fundo duas pessoas trabalhavam com aqueles óculos de relojoeiros que, por um momento, achei que eu estivesse numa antiga loja do interior que um senhor consertava relógios em uma portinha de frente aos correios. Fico parado entre a porta e o balcão esperando ser atendido. Você poderia pensar que eu estivesse me lamuriando por estar esperando numa fila, num lugar estranho e que eu não via a hora de ir embora, mas aquilo tinha passado. Por um breve momento, mas que para mim parecia uma eternidade, observei uma pessoa que estava esperando atendimento também. Cabelos pretos e longos, rosto cheio de sardinhas, baixinha e com aqueles estilos mais despojados que parecem ao mesmo tempo remontar uma época grunge se confundindo com um clássico e voltando para algo moderno. Eu queria mais duas horas preso na fila. Queria ficar admirando por horas aquela pessoa. Queria dizer um oi. Mas a atitude que tomei de tocar a campainha era muito para um dia. Eu não ia falar com ela. Penso em todas as possibilidades de conversar com ela sem ter que necessariamente abrir a boca: um bilhete, um esbarrão, um gesto, uma dança, uma performance. Impossível, eu não ia conseguir. Eis, que aquela esperança que se esvaziou em mim, não sei por qual motivo, foi colocada nela com a pergunta: “Você também tá com a caixinha quebrada?”. Pronto, era tudo o que eu precisava para ficar vermelho, as pernas começarem a suar, o calor na espinha subir e, sim, eu sabia que eu iria gaguejar na resposta. Respirei fundo e falei: “Quebrou, infelizmente”. E deu aquele sorrisinho vergonhoso que com certeza deve ter sido horrível e minha cara deve ter ficado como uma coisa extremamente estranha. Minha vez chega, sou atendido, passo todos os meus dados para a recepcionista e um minuto depois vejo a porta bater. Ela tinha ido embora. Eu não sabia seu nome, eu não sabia quem era, eu não sabia nada daquela pessoa. Será que os efeitos do remédio me fizeram projetar uma coisa boa no meio ao caos. Talvez. O caos acaba ressaltando a beleza das coisas. A letra bonita do meu pai no caderno sujo talvez tenha sido a prova disso.