De repente o despertador toca – são seis da manhã – e a monótona rotina te chama para enfrentar mais um dia a procurar sentido para vida. A noite mal dormida, talvez duas ou três horas de sono num pêndulo de idas e vindas ao banheiro, ao celular e a luta contra o pigarro da garganta inflamada e o arrepio no corpo provocado por um estado febril. O vento e o escuro indicam que o inverno chegou. Já é junho e o vento frio entra pelas passagens de ar da janela num sibilar constante que parece um grito em meio ao silêncio. A cama quente te abraça como se fosse a areia da praia em uma noite quente de verão – é difícil levantar. A cada tentativa de sair do estado de sono são mil pensamentos sobre o que enfrentar durante o dia. Enfim sentado, meus pensamentos se firmam: “Vai para o hospital e de lá para o trabalho”. Sentar à beira da cama é a pior decisão possível, é como se você se despedisse de alguém que gosta e de repente você volta alguns passos para dar mais um abraço… você vai querer ficar. Os olhos percorrem por um momento o quarto, alguns livros na estante, um pouco de tinta espalhada por uma paleta, telas inacabadas, livros inacabados, desenhos por fazer – quase tudo por fazer. Colocar os chinelos nos pés nunca foi tão difícil, estou de pé. O espelho do banheiro está velho, duas manchas escuras na altura dos olhos, muitos riscos de forma desastrosas a cima da cabeça e um olhar sem rumo. A camisa está amarrotada, a calça cor verde já está desbotada e a bota manchada, estou vestido.
O caminho para o martírio é curto, porém triste. Apesar do inverno, a chuva cai fina e forte o suficiente para molhar seu sapato e sua meia. A cidade é cinza, sem cor e sem vida. Não há arte, não há bom dia, nem respeito aos mínimos detalhes das relações sociais que se vão e vem a todo momento. A cada esbarrão pelo metrô te faz perceber que a cultura predominante é a da indiferença. É mais fácil se esbarrar em alguém e ir embora rápido, como se nada tivesse acontecido, do que parar e pedir as singelas desculpas de quem se preocupou com alguém durante o dia que mal começou. A próxima estação é anunciada, as pessoas se levantam e se espremem diante às portas, como se cada segundo perdido fosse um milhão de reais a menos em suas contas, afinal, dinheiro é a liberdade da maioria – ou pelo menos acham que é.
O hospital é o lugar mais triste para tentar se curar de qualquer doença. Muros altos, gente triste, depressão, filas, sofrimento e a indiferença entre as pessoas fortalece ainda mais os vínculos que as pessoas já não criam na cidade. Parece uma extensão da própria metrópole. O que te cura naquele lugar não é o ambiente, nem os médicos e nem o tempo que fica ali hospitalizado, mas os remédios. Isso quando os remédios curam. Sentado numa dessas cadeiras confortáveis, o soro gota a gota entra no meu sangue e a angústia de permanecer naquele local só vai aumentando. A médica me pede para descansar hoje, pois é melhor para se recuperar. Estou livre por um dia, livre da rotina, livre do que me prende.
Entre todas as indiferenças e tristezas, a cidade tem algo grandioso e que ainda resiste: a cultura. Artistas de rua, teatros, concertos, galerias, exposições, centros culturais e mais uma légua de lugares inusitados que respiram arte. Por mais triste que sejam os dias, música é um dos estados da arte que está presente em quase todos os momentos. Tão forte é o poder da música que para mim se tornou quase um mantra. Todos os dias preciso ligar minha caixinha de som e colocar algum som aleatório que me deixa em paz por pelo menos dez, quinze, às vezes até muitos minutos. Justo nesses dias triste que música faz tão bem, minha caixinha de som estava quebrada e, melhor que repousar e enfrentar a rotina bem no dia seguinte, seria consertar o que me deixa todo dia menos quebrado. O centro da cidade é um daqueles lugares que você consegue absolutamente tudo. A cada esquina um ambulante, a cada ambulante um artigo a venda, a cada beco uma língua sendo falada, a cada prédio milhões de galerias que te permitem desde almoçar no melhor lugar, até comer o podrão barato e humilde que deixa qualquer um satisfeito. Andar por aqui é difícil, mas tem vida. Diferente do metrô e de toda massa que vai em busca da rotina todos os dias, o centro é quente, a vida está em todas as falas, nas rimas nordestinas e nos garotos que vendem alguns eletrônicos tentando fazer o dia. Os prédios altos e desgastados pelo tempo escondem outras tantas belezas. Procuro por um prédio rosa de oito andares, é o meu destino.
Encontro o prédio e vou logo em direção à porta e o porteiro me para: “Onde o Sr. vai?”. Digo para ele que preciso ir até a assistência técnica autorizada para consertar minha caixa de som. Nesse momento ele abre um livro velho, cheio de orelhas, amarelado e malcuidado. Lembro nesse momento de um período da minha infância em que esses cadernos fizeram parte. O ano era mais ou menos 1997, em um período em que eu morava no interior e muitas das minhas manhãs eram passadas sentadas em uma mesa de madeira bem rústica que servia como um “caixa” a observar meu pai trabalhando no açougue. Sempre que chegava algum cliente, meu pai, simpático que era, logo abria um sorriso, atendia como se fosse a pessoa mais importante do mundo independente da classe social, cor, gênero ou sexualidade e, quando acabava de embrulhar a carne num papel rosa, muito parecido com um jornal, fazia a seguinte pergunta: “vai pagar em dinheiro ou para marcar?”. Nesse momento, meu velho que ainda não estava velho, tirava uma caderneta da gaveta da mesa em que eu estava sentado. A caderneta parecida com o caderno do porteiro era toda manchada de sangue e poeira, mas tinha uma letra linda que só meu pai tinha. Via caos e beleza no mesmo lugar. Talvez o caos seja uma maneira de fortalecer a beleza. Meu pensamento se vai e volta com a pergunta do porteiro: “Seu nome?”. Falo meu nome e ele me diz que preciso ir até o quarto andar.
Pego o elevador, subo até o quarto andar e assim que eu saio me vejo confuso sobre qual direção devo tomar. Várias portas estão por ali sem identificação nenhuma sobre loja, apartamento ou qualquer coisa nesse sentido. Tento abrir a primeira porta à minha frente e me deparo com um cômodo minúsculo, mais ou menos um metro quadrado, com apenas duas coisas: uma lixeira impecavelmente limpa e um manequim de loja com uma escrita no peito “Vendo-me”. Saio meio perturbado daquele lugar, bato a porta às minhas cotas e me dirijo para a porta ao lado, a única que estava com um pouco de barulho no interior. Tento abrir, mas a porta estava trancada. Logo vem aquele medo “toco a campainha ou não”. Pois bem, atitude nunca foi meu forte, mas eu só queria ir embora, pelo menos daquele prédio, afinal eu tinha uma reunião para fazer ainda hoje com alguém que poderia mudar minha vida. Calma, eu ainda não mencionei sobre a reunião! Preciso voltar algumas horas do dia, quando eu ainda estava no hospital e lhes contar uma coisa.
Ainda quando eu estava no hospital me martirizando pela péssima rotina que tenho e por achar que aquela doença era justamente fruto da vida que eu tenho, recebi uma mensagem de alguém. A mensagem era de um diretor de um espaço cultural me fazendo um convite para um café. Cultura, artes, música, exposições. Meus olhos naquele momento se perderam no vazio e me fizeram acreditar que havia esperança de dias melhores em meio ao caos de um hospital e de uma vida que há tempos não me agradava. Eu prontamente respondi a mensagem aceitando o convite.
De volta às portas misteriosas, enfim tomo a decisão. Aperto a campainha. Num estalar automático a porta se abre e vejo um apartamento antigo à minha frente. Pelas paredes haviam prateleiras com muitos materiais eletrônicos, computadores antigos e amarelados. Na sala ao fundo duas pessoas trabalhavam com aqueles óculos de relojoeiros que, por um momento, achei que eu estivesse numa antiga loja do interior que um senhor consertava relógios em uma portinha de frente aos correios. Fico parado entre a porta e o balcão esperando ser atendido. Você poderia pensar que eu estivesse me lamuriando por estar esperando numa fila, num lugar estranho e que eu não via a hora de ir embora, mas aquilo tinha passado. Por um breve momento, mas que para mim parecia uma eternidade, observei uma pessoa que estava esperando atendimento também. Cabelos pretos e longos, rosto cheio de sardinhas, baixinha e com aqueles estilos mais despojados que parecem ao mesmo tempo remontar uma época grunge se confundindo com um clássico e voltando para algo moderno. Eu queria mais duas horas preso na fila. Queria ficar admirando por horas aquela pessoa. Queria dizer um oi. Mas a atitude que tomei de tocar a campainha era muito para um dia. Eu não ia falar com ela. Penso em todas as possibilidades de conversar com ela sem ter que necessariamente abrir a boca: um bilhete, um esbarrão, um gesto, uma dança, uma performance. Impossível, eu não ia conseguir. Eis, que aquela esperança que se esvaziou em mim, não sei por qual motivo, foi colocada nela com a pergunta: “Você também tá com a caixinha quebrada?”. Pronto, era tudo o que eu precisava para ficar vermelho, as pernas começarem a suar, o calor na espinha subir e, sim, eu sabia que eu iria gaguejar na resposta. Respirei fundo e falei: “Quebrou, infelizmente”. E deu aquele sorrisinho vergonhoso que com certeza deve ter sido horrível e minha cara deve ter ficado como uma coisa extremamente estranha. Minha vez chega, sou atendido, passo todos os meus dados para a recepcionista e um minuto depois vejo a porta bater. Ela tinha ido embora. Eu não sabia seu nome, eu não sabia quem era, eu não sabia nada daquela pessoa. Será que os efeitos do remédio me fizeram projetar uma coisa boa no meio ao caos. Talvez. O caos acaba ressaltando a beleza das coisas. A letra bonita do meu pai no caderno sujo talvez tenha sido a prova disso.